quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

do humanamente possível

.
esculpidas em pedra ou em palavra
desenhadas em som ou movimento
vida e morte se encontram
na comunhão possível

o mais
é o vazio
entre nós

solidão é ser humano
.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

~~~

.
Olha só, que viagem!
As pessoas na lagoa
não se vêem na paisagem.

***

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

incurável *


Após centenas de exames, todos negativos,
chegou à conclusão que a vida era sua doença terminal.
Sem cura ou tratamento, um dia, morreu.

_________________________________________________
* Publicado originalmente nos minimínimos (modificado).

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

( . . . )

.
silêncio eloqüente -
as palavras
passam rente
.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

LIBRAS

.
parlando
em silêncio
a vida muda
.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

...

.
Do alto, tudo tão longe
que não penso, nem existo.

Há palavra sem contexto
sem medo, sem perdão
sem culpa, sem dó, sem ira?

E agora, quem sou eu,
senão o ar que me respira?
.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Primavera *


Os primeiros passos
fincam raízes no mundo.
As asas vêm depois.

______________________________________________
* Dedicado aos meus pais, que me permitiram ter raízes e asas.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

adiantrasado


por que é que não sentimos
saudades do que seremos,
dos encontros e chegadas
do por-do-Sol que veremos,
do vento que dançará
nas flores que plantaremos?

por que é que a saudade
traz os olhos doloridos
de querer tanto rever
os jacarandás floridos
do quadro em que não se pintam
cheiros, sons e outros sentidos?

e por que nós não podemos
só fechar nossas janelas,
reviver, na solidão
flores, cores, tarantelas
e, quem sabe, recolher
umas flores amarelas?

será o nome incorreto
ou o tempo está errado?
há algum erro de projeto
ou eu que estou adiantado?

vamos logo ao assunto
pergunto, e não me acabrunho
porque é que flor de maio
este ano floriu em junho?

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

desaforismo (2)


Trocar idéias não obriga ninguém a mudar de idéia.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

*??*


dúvidas:
duas vidas
únicas


(31.mar.2005)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Tentativa de haicai (10)


Vento da manhã
sopra as flores do jardim
espirros! espirros!


(21.out.2007)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

tentativa de haicai (9)


cidade cinzenta -
numa fresta do concreto
folhinhas de avenca

(26.nov.2007)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

desaforismo (1)


O ideal, como o horizonte, está sempre mais adiante.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

anotações para um dicionário improvável (1)


tempo (s.m.): rua de mão única onde é proibido parar e estacionar.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

SÓ LETRAR

.
tecer palavras
fios de vento
em tear indizível

contra
dizer palavras
que o ar
te pega

na letra

.

domingo, 30 de novembro de 2008

ainda *

.
nada de novo

e o nada
se desmanchando
em algo
velho

de novo

.
________________________
* Publicado originalmente no
Sindicato dos Escritores Baratos

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

tentativa de haicai (8)

.
dança da chuva

as folhas no jardim
brincam de roda

(10.abr.2005)
.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

tentativa de haicai (7)

.
cheiro de terra molhada:

a doce lembrança
de chuvas passadas

(07.abr.2005)


terça-feira, 25 de novembro de 2008

tentativa de haicai (6)

.
sinto um pé molhado
na sola do sapato
um furo novo

(07.mai.2005)

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

??!!


..
in,

.....
con,

..........GRU
...............&
..................cia.
......................ltda.
(07.mai.2005)

domingo, 23 de novembro de 2008

4 x 6 x 6

.
. . . . . . apesar do que parece
. . . . . . dá um trabalho danado,
. . . . . . chego a dizer uma prece
. . . . . . pra ver se fico inspirado

. . . . . . poesia como prosa
. . . . . . deixando de lado a rima,
. . . . . . margarida pela rosa
. . . . . . e todo trabalho acima

. . . . . . é preciso, mais ainda
. . . . . . escapar do triste fado
. . . . . . de quando o poema finda
. . . . . . parecer tudo orquestrado

. . . . . . temos que fugir do siso,
. . . . . . acabar com toda forma,
. . . . . . além disso, é preciso
. . . . . . não seguir nenhuma norma

. . . . . . a gente faz muito estudo
. . . . . . no mundo contemporâneo
. . . . . . pra escrever, no fim de tudo,
. . . . . . um poema espontâneo.

_____________________________________
Publicado originalmente nos Rascunhos Poéticos
.

sábado, 22 de novembro de 2008

Sábado


dia de faxina:
colocar o que vai aonde
o gato da casa se esconde
e eu queria estar lá na esquina.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

anúncio


...poema procura autor:
...escreve-me
...e descrevo-te.
(31.mar.2005)

*

terça-feira, 18 de novembro de 2008

( I )


sonho com você na chuva

acordo com os olhos úmidos
e a boca seca
(jan.1995)
.

domingo, 16 de novembro de 2008

anel de diamante


. . . .
uma réstia
. . . . neste dia
. . . . tornado noite
.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

-?-

. . . . . . . . . .Vale profundo:
. . . . . . . . . .O eco é som,
. . . . . . . . . .ou lembrança?

(27.out.2006)

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

5,2,1


De querer tanto não ser,
. . . . . . . . não foi.
. . . . . . . . . . Ficou.

(11.jan.2002)

terça-feira, 11 de novembro de 2008

^*w*^


. . . . .
amor

. . . .de morcego
. . . . é . .cego.

. . . . . mor
. . . .de .o cego,
. . . . . morcego!

. . . . . mor
. . . .de .o
. . . . . morcego,
. . . . .amor!

. . ou:

. . . . . .mor.......ce.
. . . . . :. . . . . . :
. . . . . :. . .de. . .:
. . . . . :. . . . . . :

. . . . . a............go


.
(07.mai.2005)

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Sombra a pino*

...os passos pesados, como tivesse as solas pegajosas.
Foi quando viu a sombra, derretida, escorrendo caminhos próprios.


__________________________________________
*editado após a publicação.

domingo, 19 de outubro de 2008

Déjà vu

.
...e há estes dias
em que morro
sempre um pouco
pela primeira vez.
.

sábado, 18 de outubro de 2008

Elementar, meu caro senhor *

.
Quando meu livro está fechado
(ou mesmo aberto)

sem ser lido
não sou
não percebo
o tempo
. . . . . . (se é que passa)
o espaço
. . . . . . (se é que espaça)

portanto, meu senhor
nada posso declarar
acerca dos fatos
daquela noite

que nem sei mesmo
se aconteceu
ou se era noite

mas, se quer mesmo saber
leia o livro
e, por favor,

solte o mordomo.
______________________
* publicado originalmente no
Sindicato dos Escritores Baratos

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Avesso do avesso*


Era de um ateísmo fervoroso.

Até concluir que qualquer coisa
que gere tamanha descrença,
tamanho desprezo, não poderia
simplesmente inexistir.

O novo hábito não lhe caiu mal.


__________________________________________
* publicado originalmente nos minimínimos.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Mesa de bar *

.
I

- ...é um paradoxo, seja lá o que se faça, a ética será ferida. De um lado...
- Quanta besteira! Certo é certo, errado é errado!
- Bah! Tu sempre estragas a discussão! Já íamos tão bem...

II

–... eu pago, faço questão.
–De modo algum! Eu convidei!
–Meio a meio?
–Tá, é justo.
–Ihhh, rapaz...! Esqueci a carteira.
–...eu ia te pedir emprestado para pagar a minha parte...
_______________________________
* publicados originalmente nos minimíminos.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Flores para los sueños *



Toda a vida sonhou com uma mulher em meio às flores.
Sempre a mesma, poderia reconhecê-la em qualquer lugar.

Até o dia em que a viu de relance, mas já estavam fechando o caixão.

__________________
* publicado originalmente nos
minimínimos em 31.mai.2008.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

- - - - - - - *


Era a pessoa mais maravilhosa do mundo.

Nunca mais se viram e ninguém jamais esteve à altura.
__________________
* publicado originalmente nos
minimínimos em 02.ago.2008

domingo, 20 de julho de 2008

Caverna

(30.mar.2005)

do mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . .
das coisas . . . . . . . . . . . . . . . . . .
vejo apenas . . . . . . . . . . . . . . . . . .
as sombras . . . . . . . . . . . . . . . . . .

silenciosas . . . . . . . . . . . . . . . . . .
intocáveis . . . . . . . . . . . . . . . . . .
inodoras . . . . . . . . . . . . . . . . . .

o resto . . . . . . . . . . . . . . . . . .
é o que sinto . . . . . . . . . . . . . . . . . .

e não sei dizer . . . . . . . . . . . . . . . . . .

domingo, 22 de junho de 2008

A Vítima

.
— ...a repórter Paloma Bernardo traz mais informações do local. Paloma, é com você.

— Wesley, estamos em frente à residência da família Prudente Feitosa, esperando a chegada de Carlotta Prudente Feitosa, libertada hoje após quatro semanas em cativeiro. Há muito movimento, repórteres, viaturas da polícia e curiosos que esperam ver a sobrinha do senador Prudente Feitosa, seqüestrada há vinte e sete dias. O contato com a família só foi feito dez dias depois. As negociações aconteceram em segredo. A família proibiu a interferência da polícia e da imprensa, aparentemente seguindo determinação dos seqüestradores. Fontes familiares dizem que houve polêmica quanto ao pagamento do resgate milionário. O valor exato é desconhecido, assim como a origem do dinheiro. Segundo informações, o dinheiro foi entregue ontem à noite. Carlotta foi libertada na madrugada de hoje e foi levada à delegacia de seqüestros pela polícia militar. Ela saiu de lá há pouco, acompanhada de familiares. Estão chegando. Vêm escoltados pela polícia. O senador está saindo do carro. Aparecem outros familiares. Finalmente, Carlotta, de óculos escuros, desce do carro. É improvável que faça alguma declaração neste momento. Parece desorientada e é amparada pelo pai. Acena para a multidão e caminha para a casa. A mãe abre a porta, chorando. É emocionante! As duas se abraçam e entram. O senador está se aproximando, talvez faça alguma declaração.

— Senador, como está sua sobrinha após ser vítima deste seqüestro?

— Está abalada, pobrezinha... Esta brutalidade não tem tamanho! Todos nós fomos vítimas! Estamos todos reféns destes bárbaros! Não há segurança com este governo inoperante e incompetente. Vítima é quem paga resgate. Nós fomos roubados! Ela foi apenas refém! Eu que fui a vítima!! É vergonhoso um senador da república ser roubado assim! Eu que fui a vítima!...

— Voltamos ao estúdio para outras informações.
.

domingo, 15 de junho de 2008

Um Sólido*

.
Multifacetado
quase esférico
po-li-é-dri-co

as inúmeras faces, como espelhos
multiplicam, deformam, aumentam

em todas
o reflexo

desta

confortável

solidão


_____________________________________________________
* publicado no "Sindicato dos Escritores Baratos" em 10.jan.2008

sábado, 14 de junho de 2008

até a uva passa


. . . . . . . .
fora de estação
. . . . . . . . o sabor da fruta
. . . . . . . . só que não.

quatrestações senhuma


vento
folhas
árvores magras
seca
frio
chuva
verde
flores
vento
pólen
e tudo que não verão

terça-feira, 27 de maio de 2008

Até o Átomo *

.
divide-se o poema:

estrofes

versos
palavras
fonemas
sílabas
letras
traços
pontos

moléculas de tinta

na trama do papel.

ou então:


bytes

bits
elétrons

partículas

. . . .fundamentais.

divide-se

analisa-se
busca-se
. . . sentido

e perde-se o poema


um poema

. . . . não é uma coisa

poesia

. . . acontece.

_____________________________
* publicado originalmente no
blog "O reverso do verso".

quarta-feira, 21 de maio de 2008

consentido


sentido obrigatório,
a placa indicava.

obrigado, senti.

(28.out.2007)

segunda-feira, 19 de maio de 2008

IMPRESSÃO DIGITAL

.
negro de fumo
carbonato
pó de alumínio

c i a n o a c r i l a t o

arcos, presilhas
deltas, verticilos

doze pontos e uma

i d e n t i d a d e
.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

No início era o mínimo

.

ominimo
minim
ini
n

quinta-feira, 15 de maio de 2008

pela vida afora

.
luto
pela vida que se foi
pela vida que resta
pela vida que virá
luto
.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Singularidade

.
duas alianças
num único dedo
nem singular
nem plural
a . s o l i d ã o . é . f r a c t a l
.

sábado, 10 de maio de 2008

das incertezas

de todas
incontadas
(incontáveis?)
ignorâncias
que carrego

nem sei qual
desconheço
mais

ou menos?

quarta-feira, 23 de abril de 2008

distância *


Tomou do telefone para falar com a criança que fora. Ocupado ou não atendia, sabe-se lá. Escreveu uma carta. A resposta não chegou. O carteiro, quanto mais andava, mais distante. Ao longe, um aceno.

_______________

* livremente inspirado neste post, "atrás do olhar" do Blog Minimínimos.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Receita de beleza

.
Era uma rainha vaidosa.

Recém viúva, decretou a imediata destruição de todos os espelhos do país.



Plástica radical *

.
para melhorar a fachada
e dar um jeito na pança
quebrou o espelho
e jogou fora a balança!
.

__________
* dedicado a todos aqueles que o adágio popular classifica como "os piores cegos".

outoninvernando

.

vento nos galhos
sopra seco e forte
e as velhas folhas dançam
farfalhantes castanholas
num baile de liberdade
desapegando-se
partindo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . voando
como
fosse
vida
vôo
queda
livre
nada
além
nada
aquém
tudo
vão
agora
o chão
e mais nada.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Quiçá um Vôo no Escuro


voire

. . . . . como que suspenso

noir

domingo, 10 de fevereiro de 2008

while my eyes... *


o Sol se põe
em brilhos.

é tarde...

a eternidade
em meus olhos

arde.

__________________________________
*
livremente inspirado neste post, do blog Passages.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

poecais e haimínimos*


brilho da lua

pequenos pontos de luz
nas folhas molhadas


---


chuva de verão
as jovens mãos de mestra
como salgueiros


---

luzes da avenida
sobre as folhas molhadas
tantos reflexos!


---

vento nos ramos
chove ainda mais
embaixo da árvore



---

o vento nos teus cabelos
até em sonhos
eriça meus pêlos

___________

* Haicais e poemínimos produzidos na oficina de Haicai da mestra Alice Ruiz, em dezembro de 2007, na Casa das Rosas em São Paulo, SP.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Retorno

.
após quanto tempo
o mesmo lugar

enquanto estava onde

o tempo passou
sem mim
.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

sem plano de fuga

no

. .M

. . .U

. . . . R

. . . . ..O

entre o

passado

.

e o

futuro

u

. m

. . a

. . . f

. . .r

. . e

. . .s

. . . t

. . . .a

. . a

. g

. . o

. r

a

--------

-------------

------>

domingo, 13 de janeiro de 2008

tentativa de haicai (5)

..
Verão em São Paulo –
Logo antes da tempestade
As luzes se acendem
.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

A Estréia


Na platéia, figuras imponentes dos três poderes, representantes do clero, construtores, empresários, banqueiros, oficiais das três armas e da polícia militar, delegados, tabeliães, professores, balconistas, garçons, cozinheiros, alguns operários, o menino do farol com seus chicletes, o guardador de carros com seu paninho sujo e outros dignos representantes da sociedade. Conversam animadamente, respeitando os costumes e os limites sociais adequados, mantidos da forma mais conveniente. “Conversa-se com quem se tem assunto.” Nada faz mais sentido nesta data, ao mesmo tempo solene e festiva.

Há grandes expectativas e o otimismo para o futuro é contagiante. O futuro é lindo, visto daqui!

O país em franco desenvolvimento. Com redução dos impostos e dos juros, teremos crédito barato, o consumo em alta, a inflação controlada e baixa. A produção industrial estará em crescimento, a poupança, em ascensão e as exportações crescerão. A reforma agrária trará a maior produção agrícola da nossa história. A igualdade social será construída sem prejuízo para os mais abastados. Todo cidadão terá tudo que precisa para viver com dignidade e talvez até um pouco mais. A saúde e a educação públicas atingirão níveis de excelência, patamar a ser alcançado pelo setor privado. Todas as formas de crime e de injustiça serão abolidas. As drogas, o aborto, a corrupção, a pobreza, a inveja, a ira, a vaidade, o ódio, o adultério, desaparecerão sem que medidas mais duras precisem ser tomadas. Criminosos, terroristas e conspiradores terão consciência do mal que fazem à sociedade, entregarão suas armas e irão espontaneamente viver como monges reclusos. E serão felizes.

O momento se aproxima. Primeira chamada, segunda chamada, terceira chamada, as luzes se apagam. Contagem regressiva. 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1...

As cortinas se abrem. Sobre o palco ao fundo, há um espelho enorme. Em frente a ele, em pé, um homem pequeno, franzino e nu, cobre os olhos e os genitais. Não tem cabelos, não é jovem, nem velho. A cabeça é grande e o corpo todo tem uma aparência de secura áspera.

Aos poucos, ele se encolhe até encostar a cabeça no chão, sem descobrir o rosto e os genitais. Treme e soluça, como se tudo lhe faltasse. A luz ilumina a platéia silenciosa, estática.

No silêncio há um arrepio, agudo, gelado, aquela fração mínima de tempo que se demora a perceber o corte de uma navalha. E o silêncio se dilata.

O corpo, jogado ao chão, soluça convulsivamente. Faltando-lhe mais mãos para se cobrir por inteiro, mantém os genitais e os olhos cobertos.

O espelho agora reflete cada espectador, individualmente. Por um instante mágico, toda hipocrisia, toda mentira, toda vileza, toda iniqüidade, surgem monstruosas, caricatas, e cada um vê a si mesmo, seus pecados, seus crimes, suas máculas, suas omissões e mentiras confortáveis. Depois, vêem-se em seus grupos. Logo, num quadro bizarro, todos reconhecem na podridão alheia as suas próprias.

O público permanece imóvel como um suspiro preso, o tempo suspenso, que não é agora.

Ouve-se o ruído de pés correndo, pesados. Logo se percebe o pequeno homem a correr a esmo pelo palco. Quando encontra o espelho, ataca-o às cabeçadas e com os cotovelos, pés, joelhos, ombros, com o corpo todo, sem nunca descobrir os olhos ou as virilhas. Corta-se, sangra e continua a golpear o ar, pisoteando os cacos, mesmo com o espelho já completamente destruído. Seus soluços, quase infantis, vão sumindo enquanto ele se enrola lentamente no chão, no meio exato do palco. Finalmente, resta apenas o ritmo da respiração ofegante.

Em silêncio, fecham-se as cortinas.

O teatro suspira em uníssono. As expressões se relaxam, como sob a brisa fresca ao fim do dia quente.

Agora tudo está mudado. O que passou, passou. Sem ressentimentos, é hora de reiniciar!

Como se ensaiada, arrebenta uma onda de aplausos, palmas, assobios!

Todos gritam seus votos e riem e choram e se abraçam, até que as lágrimas secam sobre os rostos cansados de sorrir.

Voltam, então, para suas casas, suas vidas.

O ano novo estreou.