. As fileiras de barracos são separadas por vielas muito estreitas. Num canto, há um volume coberto com papéis presos por pedras e um sapato. Algumas pessoas começam uma aglomeração que a polícia, em vão, tenta dispersar.
corpo sem nome
o jornal de ontem
cobre a notícia de amanhã
o jornal de ontem
cobre a notícia de amanhã
aurora cinzenta
o vento traz
um novo dia
. O cordão de isolamento recém instalado já é pouco para manter as pessoas à distância. Tem-se a impressão de que todos que passam, param por um instante. Dos que ficam, a maioria são mulheres. Algumas trazem bebês no colo, algumas vêm cercadas de crianças de vários tamanhos. Qualquer rajada de vento aumenta a expectativa de que o papel voe e algo se possa ver do que está embaixo.
a caminho do serviço
a breve atração
. De um lado, o jornal se tinge de sangue, que escorre vários metros viela abaixo. E segue descendo, escuro, viscoso, fazendo desenhos incompreensíveis no chão. Agora já há um círculo bem definido de pessoas ao redor. Por onde o sangue escorre, dá-se passagem. Crianças andam e brincam por toda parte. Algumas, é inevitável, sujam os pés na lama, mistura de sangue com o barro do chão. Ninguém nota ou parece estranhar.
não é para o mar
que este rio corre
nada mais a fazer
senão se distrair
com a tragédia alheia
senão se distrair
com a tragédia alheia
“... sabe quando a gente joga uma pedra na água e aparecem aquelas ondas, aqueles círculos correndo pra fora?
É como se fosse o contrário: aos poucos, o círculo se fecha...”
É como se fosse o contrário: aos poucos, o círculo se fecha...”
será este o assunto
nas mesas, nos bares?
“meninos, eu vi”
nas mesas, nos bares?
“meninos, eu vi”
. Os policiais afastam um pouco a multidão, a cada vez que a roda se fecha. O corpo é descoberto: está numa posição estranha, não parece natural. Era jovem, tinha o cabelo muito curto, bermudas, camiseta, chinelos “de dedo”. O rosto está apoiado no chão, o boné ao lado. Foram vários tiros, três na cabeça. Alguns dos presentes o conhecem: “morava logo ali embaixo”, mas ninguém ouviu nada.
para sobreviver
é preciso aprender
a não saber nada
é preciso aprender
a não saber nada
. O corpo é despido, virado, examinado, recolhido. A multidão fascinada assiste a tudo. O rabecão leva o cadáver. A multidão se dispersa. A perícia e os policiais militares também se vão. Sobram, no chão, alguns papéis sobre a mancha de sangue. O dia, enfim, começou. A mancha, agora coagulada, ficará até a próxima chuva.
o sangue nos jornais
não é só
em preto e branco
não é só
em preto e branco
gostei muito
ResponderExcluirquero saber se posso inserir em aliás
beijos
Fiquei muito feliz em me mostrar tão rico conteudo. Parabéns meu querido amigo. beijos da Serei@SP
ResponderExcluirVc é perfeito . Um prosaísta como poucos . Adoro seus secritos . Beijos . Reginna Sampaio
ResponderExcluirAlvíssaras!
ResponderExcluirFinalmente consegui abrir aqui!...Vou aproveitar pra agradecer tb sua honrosa visita na sementeira (e o recado bonito). Saudades. Beijo.
ResponderExcluirVC é distinto! bom texto, um abraço.
ResponderExcluiro rio real que escorre escarlate pela rua das dores.
ResponderExcluirlindo texto, primo.
abs.
Lindo texto, você poetiza de forma magnifíca o cotidiano implacável, frio, rotineiro, quente, de muitos profissionais que vivem esta realidade.
ResponderExcluirOrgulho primo!!!
você é muito bom com palavras.....
Gostei bastante! Um texto tenso. Lia-o e ouvia João Bosco e "Tá lá o corpo estendido no chão, invés de rosto uma foto de um gol", e ouvia Legião Urbana e "É sangue mesmo não é mertiolate,todos querem ver e comentar a novidade, tão emocionante um acidente de verdade, vai passar na televisão, vai passar na televisão". O interessante é a base extremamente real e comum do absurdo. Obrigado. Abraço.
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