sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

A Estréia


Na platéia, figuras imponentes dos três poderes, representantes do clero, construtores, empresários, banqueiros, oficiais das três armas e da polícia militar, delegados, tabeliães, professores, balconistas, garçons, cozinheiros, alguns operários, o menino do farol com seus chicletes, o guardador de carros com seu paninho sujo e outros dignos representantes da sociedade. Conversam animadamente, respeitando os costumes e os limites sociais adequados, mantidos da forma mais conveniente. “Conversa-se com quem se tem assunto.” Nada faz mais sentido nesta data, ao mesmo tempo solene e festiva.

Há grandes expectativas e o otimismo para o futuro é contagiante. O futuro é lindo, visto daqui!

O país em franco desenvolvimento. Com redução dos impostos e dos juros, teremos crédito barato, o consumo em alta, a inflação controlada e baixa. A produção industrial estará em crescimento, a poupança, em ascensão e as exportações crescerão. A reforma agrária trará a maior produção agrícola da nossa história. A igualdade social será construída sem prejuízo para os mais abastados. Todo cidadão terá tudo que precisa para viver com dignidade e talvez até um pouco mais. A saúde e a educação públicas atingirão níveis de excelência, patamar a ser alcançado pelo setor privado. Todas as formas de crime e de injustiça serão abolidas. As drogas, o aborto, a corrupção, a pobreza, a inveja, a ira, a vaidade, o ódio, o adultério, desaparecerão sem que medidas mais duras precisem ser tomadas. Criminosos, terroristas e conspiradores terão consciência do mal que fazem à sociedade, entregarão suas armas e irão espontaneamente viver como monges reclusos. E serão felizes.

O momento se aproxima. Primeira chamada, segunda chamada, terceira chamada, as luzes se apagam. Contagem regressiva. 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1...

As cortinas se abrem. Sobre o palco ao fundo, há um espelho enorme. Em frente a ele, em pé, um homem pequeno, franzino e nu, cobre os olhos e os genitais. Não tem cabelos, não é jovem, nem velho. A cabeça é grande e o corpo todo tem uma aparência de secura áspera.

Aos poucos, ele se encolhe até encostar a cabeça no chão, sem descobrir o rosto e os genitais. Treme e soluça, como se tudo lhe faltasse. A luz ilumina a platéia silenciosa, estática.

No silêncio há um arrepio, agudo, gelado, aquela fração mínima de tempo que se demora a perceber o corte de uma navalha. E o silêncio se dilata.

O corpo, jogado ao chão, soluça convulsivamente. Faltando-lhe mais mãos para se cobrir por inteiro, mantém os genitais e os olhos cobertos.

O espelho agora reflete cada espectador, individualmente. Por um instante mágico, toda hipocrisia, toda mentira, toda vileza, toda iniqüidade, surgem monstruosas, caricatas, e cada um vê a si mesmo, seus pecados, seus crimes, suas máculas, suas omissões e mentiras confortáveis. Depois, vêem-se em seus grupos. Logo, num quadro bizarro, todos reconhecem na podridão alheia as suas próprias.

O público permanece imóvel como um suspiro preso, o tempo suspenso, que não é agora.

Ouve-se o ruído de pés correndo, pesados. Logo se percebe o pequeno homem a correr a esmo pelo palco. Quando encontra o espelho, ataca-o às cabeçadas e com os cotovelos, pés, joelhos, ombros, com o corpo todo, sem nunca descobrir os olhos ou as virilhas. Corta-se, sangra e continua a golpear o ar, pisoteando os cacos, mesmo com o espelho já completamente destruído. Seus soluços, quase infantis, vão sumindo enquanto ele se enrola lentamente no chão, no meio exato do palco. Finalmente, resta apenas o ritmo da respiração ofegante.

Em silêncio, fecham-se as cortinas.

O teatro suspira em uníssono. As expressões se relaxam, como sob a brisa fresca ao fim do dia quente.

Agora tudo está mudado. O que passou, passou. Sem ressentimentos, é hora de reiniciar!

Como se ensaiada, arrebenta uma onda de aplausos, palmas, assobios!

Todos gritam seus votos e riem e choram e se abraçam, até que as lágrimas secam sobre os rostos cansados de sorrir.

Voltam, então, para suas casas, suas vidas.

O ano novo estreou.

2 comentários:

  1. diz o que quer dizer de forma tão intensa... chega a ser arrepiante. um sarcasmo, perdoe-me a expressão, "delicioso". plateia que é palco e palco que é plateia... o rodolfo escreve muitíssimo bem e eu adoro lê-lo (e confesso que já tinha saudades :)).
    um beijo.

    ResponderExcluir
  2. quanta dor e horror em nascer de novo, quase peço ao pobre e esmirrado ser que não o faça. eu quase subi ao palco e o abracei dizendo: "não!!! deixe que eu cuido de vc, vamos já embora daqui. que fiquem estes sórdidos a gozar de si mesmos. vamo-nos para onde tu possas se fortalecer e curar!" Não sei como Rodolfo, mas não consegui deixar de chegar ao fim do texto(bem que tentei)e lá chegando não consegui deixar de me envergonhar da minha covardia; não era o horror do fim, era o atravessamento para a vida. Ele não queria ver, tampouco eu. Ele não queria se mostrar ... e eu? E este público sádico e ingênuo? Para mim, este é o seu melhor conto. A mim será preciso atravessá-lo parágrafo a parágrafo.

    ResponderExcluir